Em alguns momentos do projeto VoluntariAnima (projeto voltado para atender a articulação entre voluntários e a Anima), procuramos promover um debate entre os participantes, tendo como foco as concepções que os voluntários apresentam com relação ao HIV/Aids. Para levantar esta “lebre” usamos um caso, tratado pela mídia, envolvendo a criminalização do portador por não contar ao seu parceiro sua condição de soropositivo.
Durante sua passagem ao IX Congresso Brasileiro de Prevenção às DST e Aids, a diretora psicopedagógica da Anima, Renata Brandoli, teve a oportunidade de acompanhar uma discussão que tratava justamente da criminalização e a violação de direitos do portador.
Para repensar esta questão é preciso um pouco de contexto. A criminalização da transmissão sexual do HIV nas duas primeiras décadas da epidemia, segundo Luiz Mott, um pesquisador que juntou as reportagens com esta questão que ganharam destaque na mídia entre os anos de 1984 e 1999, concebia a pessoa vivendo com HIV/Aids como seres revoltados e vingativos, sempre aptos e dispostos a transmitir intencionalmente (dolosamente) o HIV ou, em alguns casos, seres passíveis de transmitir culposamente a aids por negligência.
Não se sabe se estas notícias baseavam-se em fatos reais ou se faziam parte da construção de um imaginário social da aids, expresso por um temor frente à nova epidemia. O fato é que este imaginário ainda perdura.
Apesar de alguns casos serem indiciados por crime de epidemia (artigo 267 do Código Penal Brasileiro), o mais frequente era o indiciamento por crime de homicídio doloso. No Direito Civil o “dolo” é caracterizado pelo ato intencional de prejudicar o outro. Há ainda casos enquadrados no artigo 131 do CP (perigo de contágio de moléstia grave) ou do artigo 132 (perigo para a vida ou saúde de outrem). Para o autor, raras vezes a imprensa colocou em dúvida a justeza das prisões, proporcionando uma condenação moral das pessoas com aids por parte das autoridades, abuso de poder e violação dos direitos humanos.
Mesmo com a mudança da epidemia da aids que tornou-se uma doença epidemiologicamente controlável e individualmente tratável, muitos ainda consideram a transmissão do vírus HIV como arma letal. Na edição 14 (22/08/2011) deste informativo, denunciávamos o ato de uma médica que colocou no muro de sua casa seringas infectadas pelo HIV para afugentar ladrões. Em outros países, assume-se um ar de terrorismo, chegando a restringir ou até mesmo negar a entrada do portador (Para Compartilhar, V.1, ed. 48, em 21/05/2012). Em Serra Leoa, uma lei de 2007 criminaliza pessoas com HIV, considerando que as mesmas expõem outras pessoas ao risco da infecção. Em 2008, nos Estados Unidos um morador de rua, soropositivo, foi condenado a 35 anos de prisão por "agredir um funcionário público com uma arma mortal". A arma: cuspir em um policial quando estava bêbado.
Um relatório na XVIII Conferência Internacional de Aids, em Viena, revelou que cerca de 600 pessoas já foram condenadas no mundo pela exposição e transmissão sexual do HIV. Acredita-se que este número seja, na verdade, bem maior.
Para Renata, o ato de criminalizar a aids, acaba arrastando o preconceito ainda mais. E ela não está sozinha.
O documento HIV e Direito: riscos, direito e saúde, divulgado pela Comissão Global sobre HIV e Leis das Nações Unidas, enfatiza que “leis que criminalizam, discriminam e punem as populações com maior risco de contágio do HIV, como homossexuais, transexuais, prostitutas e usuários de drogas injetáveis, prejudicam o tratamento e atrapalham a luta contra a Aids” (Para Compartilhar, V.1, ed. 55, em 16/07/2012).
Deixa-se a responsabilidade da prevenção para o portador. Da mesma forma, podemos pensar nos casos de gravidez, onde fica a responsabilidade de uma concepção para a mulher apenas. Note-se que quando se trata de uma gravidez planejada, há a inclusão do parceiro no processo. Já numa concepção dita, não planejada, foi a mulher que não tomou o anticoncepcional corretamente, não usou camisinha, foi “relaxada”.
“A gente tem a mesma questão com o portador. A responsabilidade de transmissão recai sobre o portador, sendo que, as relações deveriam ser compartilhadas”, afirma a diretora. Este compartilhamento é justamente o foco de nossas discussões com os voluntários. Ao assumir as dicotomias em posições de ataque e defesa, culpados e inocentes, ter ou não ter o vírus, perde-se as motivações que antecederam o ato sexual.
Também percebemos os conflitos dos portadores frente à revelação do diagnóstico a outros. O receio de perder o(a) parceiro(a) é o que mais aparece. Ora, a medida de crime presente na transmissão pode omitir a descoberta do diagnóstico, assim é preferível não fazer o teste anti-HIV, pois uma vez positivo, tem-se um fardo a carregar. Numa parte do documentário Amor em Tempos de Aids, exibido pelo Discovery Home and Health, ouvimos uma mãe dizer que o futuro namorado da filha, soropositiva, deve ser alguém especial para entender sua situação. Esse “alguém especial”, para muitos, acaba se tornando o príncipe encantando que nunca chega ou a princesa que nunca acorda.
O excelente texto proposto pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), intitulado como HIV/Aids não é sentença de morte: uma análise crítica sobre a tendência à criminalização da exposição sexual e transmissão sexual do HIV no Brasil, traz uma concepção contra a associação entre aids e morte que gostaríamos de acrescentar:
“As pessoas que vivem com HIV/AIDS mantêm relações sexuais pelos mesmos motivos das pessoas sem HIV: amor, prazer, tédio, paixão, comércio, pressão social e cultural, entre outros. A pessoa vivendo com HIV/AIDS que tem relações sexuais, sem preservativo e sem revelar seu status sorológico, não necessariamente estará agindo com dolo (intenção, finalidade, propósito, querer) direto ou dolo in direto (eventual) de perigo; não estará agindo, inequivocadamente, com dolo de lesionar, dolo de transmitir moléstia venérea, dolo de transmitir moléstia grave, dolo de transmitir o HIV e nem mesmo dolo de matar. Admitir o contrário disso, em absoluto, é precon ceituoso e discriminatório. Praticar relações sexuais sem camisinha não enseja, necessariamente, algum tipo de intenção penalmente re provável. Se for necessário punir, que se puna o ato, e não a pessoa.”
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