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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Rodolfo Bottino: "Não sou um coitadinho"

Ator e professor de gastronomia conta ao iG o que mudou em sua vida desde que assumiu publicamente que tem o vírus da Aids

Valmir Moratelli, iG Rio de Janeiro | 09/09/2011 07:00

A cena é rápida e engraçada. Em “O Homem do Futuro”, em cartaz nos cinemas, o personagem Zero (Wagner Moura) está em 2011, mas quer mudar sua história e viaja no tempo até 1991. Ao entrar em um bar, pede uma cerveja e pergunta se pode fumar. O dono ri da cara dele: “Claro, ué! Você está num bar”. O ator atrás do balcão é Rodolfo Bottino, galã da década de 80 da TV Globo e, atualmente, afastado das novelas.
Há dois anos Bottino assumiu publicamente que tem o vírus da Aids. Passou a receber e-mails de todo o País. Eram, em sua maioria, de jovens querendo tirar dúvidas. “Mas fui largando um pouco este peso. Podia dar, no máximo, meu depoimento de vida”, conta ele, que também enfrentou e superou um câncer de pulmão em 2006.

A entrevista a seguir aconteceu no restaurante Assis, no Cosme Velho, zona sul do Rio, onde Bottino, toda terça-feira, dá aulas de gastronomia para leigos. Antes de preparar um delicioso ceviche com purê de batata-doce e um peito de frango no gergelim, o ator relembrou momentos marcantes de sua vida e as lições que assimilou. “Não tenho medo de morrer, só não quero morrer agora. Está bom aqui. Não quero ser exemplo para ninguém. Odeio ser chamado de coitadinho”, afirma.
Bottino é inquieto. Em quase duas horas de bate-papo, fuma três cigarros, bebe duas xícaras de café bem forte e bebe um copo de água. Fora da televisão, está escrevendo dois livros, um de culinária e um de ficção. “O personagem mata as pessoas e depois as cozinha”, ri. É com este mesmo sorriso, de quem ri da vida - e para a vida - que Bottino segue a sua. “Não tenho memória para a dor”, sentencia.

G: O filme no qual você faz uma participação trata de uma possível volta ao passado. Tem vontade de viajar no tempo?
RODOLFO BOTTINO
: Apesar de ser aquariano, nunca gostei desse tipo de assunto. O que é o tempo? É um mistério. Mudar o andamento da história pode ser uma grande cagada. As coisas são erradas porque devem ser erradas. Ninguém é certinho, nem minha mãe é.

iG: Então se tivesse esta oportunidade não mudaria nada na sua vida ?
RODOLFO BOTTINO
: Te respondo com um paradoxo. Mudaria várias coisas só por saber que não posso mudar. Para dar um exemplo prático, não teria feito a faculdade de engenharia civil. Amo matemática, é bom para decorar texto. Só. Não construo edifícios. Teria feito psicologia ou filosofia. Era uma época com forte tendência hippie.

iG: Como você participou do movimento hippie?
RODOLFO BOTTINO
: A gente falava que era hippie, mas comprava jeans da moda. Usávamos o capitalismo para mostrar que éramos hippies. Isso então não é ir contra o sistema. O movimento hippie chegou ao Brasil de forma diferente do que foi vivido pelos americanos. As coisas chegavam aqui com certo ‘delay’.

iG: O que traz daquela época?
RODOLFO BOTTINO
: Acho que a ideologia ‘paz e amor’. Nada mais. Adoro dinheiro, ir a Paris gastar com coisas bacanas, cozinhar alta gastronomia. O movimento hippie surgiu na onda da guerra do Vietnã. Os americanos estavam envolvidos sim com o desabamento das torres gêmeas. Você pode achar que é teoria da conspiração. Mas americano está sempre envolvido com o dinheiro, com a guerra.

iG: Tendo vivido uma época efervescente, atualmente sua geração encaretou?
RODOLFO BOTTINO
: Minha geração encaretou muito! Sabe o que acontece? O jovem quer o novo, tem que experimentar tudo. Porque depois de velho fica uma merda experimentar as coisas. O quarentão vai ficando canônico, porque não sabe o que responder ao filho. E o velho não tem nada a perder, principalmente os que já experimentaram tudo.

iG: Galã na Ipanema dos anos 80, você vivia nas noites do Baixo Leblon emendando uma festa na outra. Experimentou de tudo?
RODOLFO BOTTINO
: Não quero entrar nestas intimidades. Posso te falar que, como garoto jovem de uma outra época, experimentei de tudo. Não, sempre tive pavor de agulha. Então experimentei quase tudo. E tem mesmo que experimentar. Como você vai falar que não gosta de abacate, se nunca comeu abacate?

iG: E qual é a pior droga?
RODOLFO BOTTINO
: Cigarro é a pior droga que existe. É mais difícil você largar o vício da nicotina do que o da heroína. Posso ficar anos sem beber, mas não fico um dia sem fumar. O cigarro te consome fazendo parte do seu gestual, da rotina sexual, da alimentação... Preciso me policiar para não fazer as coisas em função deste vício. Se não, posso transar para fumar, comer para transar... No fundo, todo vício gera isso.

iG: E o álcool?
RODOLFO BOTTINO
: Beber é complicado também... Não tem problema beber numa festa, mas quando nos damos conta estamos bebendo dezoito uísques. Ia do Leblon a Ipanema dirigindo pela calçada, chegando em casa com os quatro pneus furados. O porteiro não sabia como eu conseguia chegar inteiro estando naquele estado.

 iG: Em 2009 você assumiu publicamente que é portador do vírus da Aids. Como foi a repercussão?
RODOLFO BOTTINO
: Sabe um peso de um edifício? Foi isso que saiu das minhas costas. Passei a ter uma vida mais aberta, mais clara. Ajudei muita gente.

iG: Como assim?
RODOLFO BOTTINO
: Dando conselhos... Mas aí tive um problema de consciência gravíssimo, porque dois meninos de diferentes estados se mataram. Eles me escreveram, contando que estavam com o vírus e os pais não aceitavam. Um deles contraiu em uma festa chamada “Bare backing”, que em inglês significa montar sem cela, ou seja, transar sem camisinha. Vai uma garotada saudável para uma festa, transa sem camisinha, sabendo que tem portadores da Aids no meio. É como uma roleta-russa.

iG: Você acabou virando um terapeuta?
RODOLFO BOTTINO
: Eram milhares de e-mails, do Brasil inteiro, pedindo ajuda. Naqueles primeiros meses virei conselheiro. Mas fui largando este peso, porque não tinha gabarito para isso. Não sou sociólogo, psicólogo, filólogo, médico. Sou ator. Podia dar, no máximo, meu depoimento de vida.
iG: Sofreu preconceito depois de revelar que estava com Aids?
RODOLFO BOTTINO:
Não, mas tenho uma história ótima. Estava andando em Copacabana, com dois amigos, quando surgiu um cara imenso, todo vestido de vermelho, fortão, meio gordo, levemente careca e com uma voz apavorante, me chamando: “Seu Bottino?”. Virei e falei “Eu mesmo”. Naquela hora pensei que ia apanhar, sei lá. Ficou me olhando de cima a baixo até falar (com voz meio afeminada): “O senhor está melhorzinho?”. Caí na gargalhada. Quase chorei de tanto rir.

iG: Em algum momento você se abateu?
RODOLFO BOTTINO
: Deus me deu um ‘gift’, uma dádiva. Não encarei a vida com mau humor, nem as coisas ruins. Nem este assunto. Claro que não sou um idiota. Quando eu soube, mexeu comigo. Mas não fiquei deprimido, fui à luta. Era hora de ficar quieto, agir e tomar remédio.

iG: O que mudou na sua vida após saber que estava com Aids?
RODOLFO BOTTINO
: Por causa do vírus? Nada. Adaptei tudo à minha vida. É como adaptar a insulina a quem tem diabete ou interferon a quem tem hepatite. Vai fazer o quê? É uma coisa crônica, você tem e acabou. Não é doença, é um vírus do qual você é portador. Nunca tive manifestação da doença. Pode olhar minha cara, é direitinha. Até minha vida sexual se manteve intacta.

iG: Está namorando?
RODOLFO BOTTINO
: Hoje em dia, com 52 anos, menos. Porque me dá tanto trabalho esta parte de relações. O único momento que tenho vontade de perder a vida é quando a pessoa chega para mim querendo discutir relação (risos). No fundo quem discute relação quer transar gostoso. É uma perda de tempo, vai direto ao assunto, caramba!

iG: Quando você soube que tinha Aids, vários amigos da sua geração já tinham morrido devido à doença. Como lidou com estas perdas ao redor?
RODOLFO BOTTINO:
As coisas me doem mais quando acontecem com quem amo. Eu daria um dedinho para não ver uma mãe de um amigo sofrer. Meu sofrimento não me dói tanto. Tenho raiva de quem não luta pela vida. Tive um amigo que, ao descobrir o vírus, sentou no sofá e, dois meses depois, morreu no mesmo sofá. Não saiu para lutar.

iG: Você já contou que foi, em um só mês, a 18 enterros de pessoas que estavam doentes...
RODOLFO BOTTINO
: Quando a pessoa se entrega é chato, dá ódio. Mas quando não entrega, aí é o lado doloroso. Como aconteceu com o Cazuza, com quem tive uma linda amizade. Ele lutou muito, teve garra, experimentou todos os recursos numa época que não existia o coquetel (de remédios). Na época eu não tinha o vírus. Como sofreu o filho da mãe! Foi bonito o exemplo dele. No começo se tomava AZT doze vezes por dia. Isso mata! Acaba com seu organismo. Hoje em dia só existe uma única dose misturada ao coquetel de remédios.

iG: Como você descobriu que estava com Aids? Você lembra do dia que soube da confirmação?
RODOLFO BOTTINO:
Não lembro o ano. Não tenho memória para a dor, é como se meu cérebro bloqueasse certas coisas. Passou de um ano, já não me lembro das coisas com datas certas. Tive recentemente dez dias internado com crise renal, tomei morfina. Você acredita que não lembro da dor anterior da internação? Isso que você me pergunta é muito distante. Descobri por acaso, anos depois da morte do Cazuza (1990). Fazia exame todo mês. Ia com uma amiga no laboratório. Ela me contava piadas, a gente ria direto, enquanto não saía o resultado. Até que um dia deu positivo. Fazer o quê? Ainda assim ela me contou piada naquela manhã.

iG: A pergunta é previsível, mas necessária: teve medo de morrer?
RODOLFO BOTTINO:
Não tenho medo de morrer, nunca tive. Só não quero morrer agora. Está bom aqui. Acredito em Deus, sou católico, mas não vejo o que vivi como um carma. É o que vivi, só isso. Não quero ser exemplo para ninguém. Odeio ser chamado de coitadinho. Passo longe de ser um coitadinho.

iG: Anos mais tarde, em 2006, você passou por um câncer de pulmão. Batalha também difícil?
RODOLFO BOTTINO:
Difícil? Depois da Aids, que não me derrubou, nada seria impactante para mim. Pode apostar. O mais difícil do câncer foi a quimioterapia, que deixa o organismo horrível. Mas já superei, é coisa do passado.

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